Mesa do 4º Fórum Circular, realizado nos dias 30 e 31 de outubro, na Casa da Linguagem, em Belém, reúne pesquisadoras e realizadoras paraenses e destaca memória, ancestralidade e políticas públicas no audiovisual
Quando a senhora indígena, sentada, mãos pousadas nas coxas, aparece na tela, quase não se conecta à mulher com o corpo ornado com pintura ritual que aparece, em recortes de reportagens e vídeos, encostando de forma ameaçadora um facão no rosto de um homem branco.
As imagens, as últimas de Tuíre kayapó, são de “Tuíre: o gesto do facão”, um dos filmes exibidos na mostra “Cinema: Amazônia e Clima – Linguagem audiovisual como instrumento de voz, memória e imaginação política”, dentro da programação do 4o Fórum Circular.
Na produção do Coletivo Beture (formado por realizadores indígenas), Tuíre rememora ao filho a imagem que correu o mundo, durante as manifestações dos indígenas contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no final dos anos 1970. O homem enfrentado, um engenheiro da Eletronorte.
“O que você pensou? O que estava na sua cabeça quando você foi até o homem?”, insiste o filho. “Eu estava muito chateada. Eu queria que ele me visse. Eu quero que a floresta fique de pé para outras gerações. O Xingu está limpo até hoje por causa da nossa luta”, ela responde.

Filmes indígenas: cinema que é memória e resistência
Tuíre faleceu em agosto do ano passado, mas a sua fala reverbera, assim como a força do cinema realizado por cineastas indígenas, fortemente comprometido com a documentação da memória e da cultura de seus povos.
“Coletivos como o Beture são muito atuantes, e a gente pouco sabe disso. São filmes que circulam muito, porque eles fazem o que chamam de ‘espalhamento’, por WhatsApp e em encontros de trocas de filmes. A memória é a essência do cinema Kayapó. Registrar a imagem de alguém tem um significado enquanto resistência e preservação de território, não só do físico, mas do que chamam de corpo-território”, disse Ângela Gomes, professora do curso de Cinema da UFPA e pesquisadora dessa cinematografia.
Ela participou da conversa que se seguiu à exibição dos filmes, que ainda contou com Tayana Pinheiro, produtora executiva do curta de ficção “Boiuna”, recentemente premiado no Festival de Cinema de Gramado, e com a pesquisadora e produtora cultural Auda Piani, que apresentou seu documentário “Cozinhando no Calor de Belém Antes da Chuva”.
O documentário “Histórias da Campina”, de Larissa Ribeiro, produzido lançado este ano pelo Projeto Circular, premiado pelo edital LPG Curtas Metragem de Belém, completou a mostra. A curadoria e mediação foram da jornalista, documentarista e produtora cultural Luciana Medeiros.

A floresta ensina nossa forma de produzir filmes
Acompanhando e participando do movimento do cinema paraense há pelo menos 30 anos, Luciana instigou Tayana a falar sobre a profissionalização do setor no estado e a forma que estamos encontrando para o cinema amazônico, inclusive em relação à organização de um set de filmagem.
“Começou a mudar um pouco quando começamos a formar nossas próprias equipes. Quando falavam de sets de ficção, falavam de assédio moral, de todo tipo. Não sei se quero aprender com essa forma de fazer cinema. Acho que a relação com a floresta, em que tudo está ligado, depende do outro, em influenciado mais a forma como a gente faz cinema, de manter um ambiente digno de trabalho. Isso é sustentabilidade”, disse.

Comida que alimenta a cultura
Autora de livro e quatro documentários que abordam mestres da cultura popular e cultura alimentar, Auda Piani destacou que produzir audiovisual chegou para ela para responder ao desejo de registrar, documentar e provocar reflexões sobre as situações que verificava enquanto pesquisadora e mestra de saberes culinários.
Entre elas, a presença quase que exclusivamente feminina na função do cozinhar, mas não valorizada, e ao mesmo tempo exposta a uma série de dificuldades, como as mudanças do clima. “Essas mulheres estão trabalhando em condições cada vez mamis precárias”, destacou.
Em “Cozinhando no Calor Antes da Chuva”, ela percorre as ruas de Belém onde as bancas de venda de comida se amontoam pelas calçadas, com mulheres cozinhando ao tempo, em seus fogareiros, assim como reflete sobre a história dessas mulheres em sua relação com a cozinha. Também caminha por Icoaraci, Cotijuba e Combu, onde percebe os reflexos das mudanças do clima sobre a produção dos alimentos.
“A gente tem repetido muito essa fala sobre sustentabilidade. Mas sustentabilidade pra quem?”, provocou Auda.
Atravessando as falas, um consenso: financiamento e regulação impactam forma e conteúdo. Do desenho de som às escolhas de locação (assumir ou não a chuva), do tempo de montagem à circulação, tudo passa por recursos, editais e fundos. As convidadas reforçaram a necessidade de regulamentar e operacionalizar instrumentos locais, como a Lei Milton Mendonça (audiovisual paraense), e de manter a sociedade civil organizada nos conselhos.
O 4º Fórum Circular Campina Cidade Velha segue nesta sexta-feira, 31, na Casa da Linguagem, com patrocínio da Lojas Renner e apoio da Fundação Cultural do Pará, via Casa da Linguagem, e UFPA, via Fórum Landi e ICA – Instituto de Ciências da Arte. Após os debates, o encerramento da programação será a partir das 18h,no Palco Renner, na Praça do Carmo.
Texto: Aline Monteiro
Edição: Luciana Medeiros
Fotos: Aryanne Almeida